Carta da APOM – Associação Portuguesa de Museologia à Provedora de Justiça sobre o despacho da Senhora Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural, de 13 de janeiro de 2020, em que se determina a cedência de obras de arte pertencentes ao Museu Nacional dos Coches à Vila Galé Internacional, S. A.
Exma. Senhora
Profa. Doutora Maria Lúcia Amaral
M. I. Provedora de Justiça
Rua do Arco Pau de Bandeira, 9
1249-088 Lisboa
Lisboa, 27 de fevereiro de 2020
A APOM, Associação Portuguesa de Museologia, solicita a intervenção urgente de V. Exa. em relação a um despacho da Senhora Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural, de 13 de janeiro de 2020, em que se determina a cedência de obras de arte pertencentes ao Museu Nacional dos Coches a Vila Galé Internacional, S.A.
Este despacho é no entender da APOM ilegal, afetando a proteção e salvaguarda do património cultural e a missão dos museus nacionais.
A Senhora Secretária de Estado ordenou a entrega de bens culturais, que integram o acervo museológico do Museu Nacional dos Coches, para cedência a Vila Galé, S.A. para exposição nas zonas públicas do empreendimento Vila Galé Alter Real – Hotel, Spa, Conference & Horse Riding.
Os bens culturais requisitados pertenciam à Coleção Rainer Daehnhardt, que por Auto de Entrega, Receção e Afetação de Bens Móveis, de 9 de abril de 2018, foram “afetos à Direção-Geral do Património Cultural, para exposição permanente no Museu Nacional dos Coches, cabendo-lhe, doravante, a sua guarda e conservação”.
A Direção-Geral do Património Cultural aceitou as condições impostas pelo Ministério das Finanças, nomeadamente, a “afetação das peças constantes da relação anexa para serem expostas no Museu Nacional dos Coches”.
As referidas peças fazem parte do inventário museológico do Museu Nacional dos Coches e, nos termos da Lei Quadro dos Museus Portugueses, integram o domínio público do Estado.
A APOM defende que os bens culturais das coleções dos museus nacionais só podem ser objeto de cedência a entidades públicas ou privadas de acordo com a Lei n.o 47/2004, de 19 de agosto, observando sempre as boas práticas museológicas e de uma forma tecnicamente fundamentada.
Não é possível aceitar que o Hotel Vila Galé, onde serão expostas as peças do Museu Nacional dos Coches, tenha ou passe a ter, depois da cedência, uma atividade museológica em função da sua atividade principal, em tudo legítima, mas incompatível com a proteção, salvaguarda, estudo e exposição de bens culturais museológicos
O despacho da Senhora Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural representa um grave precedente e que, segundo as suas declarações à comunicação social, será para repetir.
A cedência de bens do acervo museológico de um museu nacional por um prazo que pode chegar a 50 anos, porque acompanham a concessão da exploração dos edifícios onde vai ser aberto um empreendimento turístico, não representa uma cedência temporária para fins museológicos e compromete as funções museológicas previstas na Lei Quadro dos Museus Portugueses.
O despacho da Senhora Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural contraria, por outro lado, as regras da competência própria dos diretores de museus, recentemente aprovadas pelo Regime Jurídico de Autonomia de Gestão dos Museus, Monumentos e Palácios, no que respeita à gestão de coleções.
Verifica-se, ainda, que o referido despacho parece ter ultrapassado as competências delegadas na Senhora Secretária de Estado Adjunta e do Património Cultural pela Senhora Ministra da Cultura.
Independentemente de os locais nos quais serão expostos os bens culturais de museus, públicos ou privados, terem, eventualmente, condições de segurança e de conservação, a APOM defende que esta decisão e as futuras decisões, já anunciadas, não são compatíveis com o conceito de museu e com a sua principal missão.
O despacho, de 13 de janeiro de 2020, já foi noticiado em vários órgãos de comunicação social, em que se aponta a ilegalidade e se contesta a sua pertinência em função das boas práticas museológicas, da defesa do património cultural e do papel essencial dos museus na sua salvaguarda.
A APOM tem conhecimento que a Diretora do Museu Nacional dos Coches considerou que a ordem da Senhora Secretária de Estado seria ilegal e solicitou a sua confirmação por escrito, dando, no entanto, cumprimento ao referido despacho, faltando, neste momento, a assinatura de um protocolo entre a Direcção-Geral do Património Cultural e a Sociedade Vila Galé, S.A. para a concretização da transferência das peças “requisitadas”.
A APOM manifesta a maior preocupação pelas consequências da cedência dos bens culturais, que foram autorizados pela Senhora Secretária de Estado, a serem expostos nas zonas públicas de um empreendimento turístico.
Nestes termos, solicita a V.Exa. que dirija, com a maior urgência, uma recomendação ao Ministério da Cultura no sentido de corrigir um ato prejudicial para a imagem dos museus portugueses e para a sua missão, por forma a tutelar o interesse difuso de proteção e salvaguarda do património cultural português.
Apresentamos a V. Exa. os melhores cumprimentos,
O Presidente da APOM
João Neto
Anexos: Lei-quadro dos Museus Portugueses
Muito bem João Neto. Esta decisão é inacreditável por totalmente contrária às regras e deveres de proteção do património cultural português e da Humanidade.